Literacies

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Arquivo mensal: outubro 2018

Fake News – Um problema de literacia midiática

Por: Isabella Gonçalves

As eleições de 2018 ficaram marcadas pela transformação das formas de comunicação e de informação. Anteriormente, ainda em 2014, a principal ferramenta para convencimento do eleitorado era a televisão. Dessa forma, o tempo de propaganda contava e muito para a decisão da corrida presidencial. Entretanto, 2018 trouxe uma nova lógica, na qual a televisão já não ocupou tal protagonismo. Prova disso está no fato de Alckmin, o candidato com maior tempo de propaganda eleitoral, ter ficado, durante toda a corrida eleitoral, em quarto lugar.

O fenômeno midiático que ficou marcado nas eleições 2018 foi o aumento do uso de Whatsapp para a disseminação de informações, que são consumidas pelo público de maneira indiscriminada, sem haver, para isso, o uso de ferramentas de checagem para a averiguação daquilo que é consumido e compartilhado. Diante disso, no Whatsapp eram vistas informações falsas sobre os mais variados candidatos, fator determinante para a definição das eleições. Neste cenário, o marketing eleitoral tradicional perdeu terreno e o usuário ganhou poder para propagar aquilo que quisesse.

Tal realidade configura uma questão grave enfrentada nessa segunda década de 2000, já que a internet possibilitou um aumento da divulgação de boatos. Ainda no início deste ano, por exemplo, foi disseminada, por meio das redes sociais, a notícia falsa de que os ovos eram, na verdade, feitos de plástico. Os diversos veículos de comunicação tiveram que fazer notícias desmentindo tal informação, tamanha foi a repercussão do público, que acreditou no boato e ainda o compartilhou nas redes sociais, tornando a informação viral.

 

Ora, a grande questão que parece urgente é entender a causa desta problemática. Afinal, você pode se perguntar como notícias tão claramente falsas são credíveis, até mesmo por pessoas com relativo grau de esclarecimento. Trata-se de uma questão de literacia midiática, um campo teórico que tem recebido muita atenção nas últimas décadas e sofre disputas teórico-metodológicas nos mais diversos países do globo. O objetivo deste texto, entretanto, não é o de debater acerca das diferentes conceituações. Adotaremos, aqui, a ideia de literacia midiática enquanto um conjunto de habilidades necessárias para acessar, analisar, avaliar e comunicar mensagens de maneiras variadas (Aspen Media Literacy Institute, 1992). De acordo com Namle (2007), o propósito da educação para a literacia midiática é o de ajudar indivíduos a desenvolver habilidades responsáveis por torná-los pensadores críticos, comunicadores efetivos e cidadãos ativos.

Tais habilidades são fundamentais, por exemplo, para que o leitor consiga perceber como os signos influenciam a forma como os significados são criados. Entretanto, está claro que o prosumidor de hoje (aquele que consome e produz) não possui a habilidade necessária para consumir e, tampouco, produzir e compartilhar. Tal problemática se torna grave, uma vez que a rede possibilita que suas informações sejam disseminadas, mesmo ele não tendo o nível crítico necessário para interpretar informações e entender o que está compartilhando e produzindo. Nessa perspectiva, a educação para a literacia midiática parece uma questão urgente, já que informações falsas, ao serem disseminadas e acreditadas, podem causar efeitos devastadores na sociedade.

Entretanto, ao pensar em tais questões, é sempre importante não demonizar os meios de comunicação ou as redes sociais. Afinal, é preciso ter em mente que os meios de comunicação não têm ética, sendo esta uma responsabilidade de seu usuário. Não trata-se, portanto, de um debate acerca dos efeitos nocivos da internet, já que ela possui possibilidades infinitas. Trata-se, assim, da reflexão acerca de como capacitar o indivíduo para o seu uso consciente.

National Association for Media Literacy Education, 2007. Core principles of media literacy education in the United States. Acesso em 5 de outubro de 2018. Disponível em: http://namle.net

O espetaculoso da vida

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por Ramsés Albertoni

 

Ao refletir a respeito das pesquisas de Debord e Foucault, Crary (2013) pondera que, a princípio, as formulações dos dois autores podem parecer distantes, porém, eles descrevem mecanismos difusos de poder através

“[…] dos quais os imperativos de normalização ou conformidade permeiam a maioria das camadas da atividade social e tornam-se subjetivamente internalizados. Nesse sentido, o controle da atenção […] tem menos a ver com os conteúdos visuais desses monitores e mais com uma estratégia ampla sobre o indivíduo. O espetáculo envolve a construção de condições que individualizam, imobilizam e separam os sujeitos. […] Dessa maneira, a atenção torna-se um elemento-chave para o funcionamento de formas não coercivas de poder.” (CRARY, 2013, p. 100-101)

É preciso deixar claro que o espetáculo do qual fala Crary, a partir da conceituação de Debord, é o “espetáculo integrado”, esse sim pode ser articulado com o formular foucaultiano. Debord (1997) conceitua que o espetáculo existe sob três formas, quais sejam, a “concentrada”, a “difusa” e a “integrada”.

O espetáculo concentrado está na esfera do capitalismo burocrático, controlador do trabalho social total, e sua ideologia concentra-se em torno de uma personalidade ditatorial. O espetáculo difuso está na esfera abundante das mercadorias do capitalismo tardio (MANDEL, 1982), cuja satisfação se dá no seu reconhecimento como mercadoria, uma efusão religiosa diante da liberdade soberana da mercadoria. Assim, vivencia-se o “império do efêmero”, segundo Lipovetsky (1989), pois sem conteúdo próprio, a moda é uma forma específica da mudança social, pois não está vinculada a um objeto determinado, ela é um dispositivo social cuja característica é uma temporalidade breve e de reviravoltas fantasiosas que afetam várias esferas da vida social. Tal categoria instiga os indivíduos a escolherem livremente entre tantas mercadorias novas.

Por fim, o espetáculo integrado que, de acordo com Crary (2013), possui pontos de coincidência importantes com o pensamento de Foucault,  é uma prática unificada que transformou economicamente o mundo atual numa organização consensual, cujo mercado mundial é falsificado e avalista do próprio espetáculo. Sua característica é a combinação das duas categorias anteriores, que se fortaleceram e se expandiram mundialmente. Cinco aspectos principais caracterizam a sociedade modernizada, quais sejam, a incessante renovação tecnológica, a fusão econômico-estatal, o segredo generalizado, a mentira sem contestação e o presente perpétuo. O tempo irreversível unificou-se mundialmente no mercado mundial, no espetáculo mundial. Este tempo da produção é a medida das mercadorias, é o tempo geral da sociedade, cuja significação é o interesse especializado de um tempo particular.

O espetáculo integrado, desse modo, é a própria sociedade e o seu instrumento de unificação, é a mediação imagética da relação social entre as pessoas. Como Weltanschauung, o espetáculo integrado é a objetivação de uma visão de mundo, é o modelo atual da vida dominante na sociedade cindida entre realidade e imagem. Conforme Debord,

“A linguagem do espetáculo é constituída de sinais da produção reinante, que são ao mesmo tempo a finalidade última dessa produção. […] O espetáculo que inverte o real é efetivamente um produto. […] a realidade surge no espetáculo, e o espetáculo é real. Essa alienação recíproca é a essência e a base da sociedade existente.” (DEBORD, 1997, p. 15)

A sociedade do espetáculo integrado configura a existência humana como simples aparência, porquanto o espetáculo, como principal produção da sociedade atual, domina os homens já dominados totalmente pelo sistema econômico ou, como afirma Habermas (1999), é o sistema colonizando o mundo da vida. Não se trata mais de ser ou de ter, mas de parecer. As imagens, como simples imagens de simulação, de ausência, tornaram-se seres reais e a motivação eficiente de um comportamento hipnótico.

Portanto, a estetização da vida política pela economia do entretenimento é a apoteose fascista, pois o fascismo procura organizar as massas de modo a manter as relações de produção e de propriedade, permitindo apenas a expressão de sua natureza, mas não a dos seus direitos como indivíduo, direitos que serão confundidos com os direitos do cidadão. Dessa forma, a reprodução em massa da indústria do entretenimento é a reprodução das massas entretidas no espetaculoso da vida.

O espetáculo integrado é, por fim, a realização técnica do exílio interior do homem. Em sua raiz encontra-se a especialização do poder, a representação diplomática da sociedade hierárquica diante de si mesma. No discurso ininterrupto de um monólogo laudatório existe o poder separado que se desenvolve a si mesmo.

Referências

CRARY, J. Suspensões da percepção: atenção, espetáculo e cultura moderna. São Paulo: Cosac Naify, 2013.

HABERMAS, J. Teoria da acción comunicativa. Madrid: Taurus, 1999.

LIPOVETSKY, G. O império do efêmero. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

MANDEL, E. O capitalismo tardio. São Paulo: Abril Cultural, 1982.

Navegar é preciso

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A internet diminuiu o tamanho do mundo. Sua história começou no final da década de 1950 após o lançamento dos primeiros satélites, quando foram iniciadas pesquisas que deram origem às formas atuais de comunicação. Os primeiros computadores foram conectados em uma rede já na década de 60 e nos anos 1970 começou a surgir a internet como a conhecemos hoje, uma teia feita de múltiplas redes que conecta milhões de computadores ao redor do mundo e que se transformou numa ferramenta indispensável para milhares de pessoas. Já nos anos 1990 surgiu o projeto World Wide Web (WWW), que impulsionou a utilização da rede mundialmente.

Em casa ou no trabalho a internet é um mar de conexões, onde navegar é preciso. Compartilhando um mundo sem fronteiras, usando pacotes de dados, redes domésticas, acadêmicas, comerciais e governamentais, carregam informações e negócios.

Na internet, podemos enviar e-mail, visitar blogs, entrar em diversos sites, como os de busca, jornais, redes sociais, assistir filmes e séries e muito mais. Podemos também, vender, comprar, administrar contas bancárias, oferecer serviços, baixar arquivos e programas, livros, fazer pesquisas, estudar, ouvir música, jogar online, conhecer pessoas, fazer amigos, relacionar com alguém, trocar ideias em tempo real.

Mas da mesma forma que o uso da internet cresce a cada dia, os problemas e perigos da net aparecem na mesma proporção. Uma gama de artifícios surgem para atrapalhar ou prejudicar os internautas e se espalha pela rede. Por trás de uma simples mensagem podem haver vírus, cavalos de Tróia e outros programas maliciosos, além de diversos obstáculos à navegação segura.

Para combater esses problemas contamos com algumas barreiras de proteção, tais como o firewall.  Entretanto, além de destes dispositivos é necessário ter o conhecimento básico para navegar na rede de forma tranquila e segura, sabendo identificar os perigos e armadilhas que aparecem. Estamos nos referindo a literacia midiática.

Literacia Midiática é a capacidade que as pessoas têm de acessar as mídias, de analisar e avaliar os conteúdos que são veiculados nestes meios, bem como a capacidade de produzir conteúdo para ser exibido. Vem sendo estudada em diversos países desde os anos 1980, e abrange diversas áreas do saber, como a comunicação, pensamento crítico e educação. Num primeiro olhar pode parecer meio difícil achar uma única definição para este termo tão amplo, mas que tenta definir uma maneira de deixar as pessoas mais independentes e precisas no que tange aos veículos de comunicação.

Potter, em seu artigo “The state of media literacy”, relata os diversos conceitos publicados por organizações que tem seu interesse no tema. Apesar da controvérsia em achar uma única definição, todos concordam que literacia midiática é um termo aplicado ao estudo da interpretação textual, do contexto e ideologia e audiência propagados pela mídia (jornal, TV, rádio, internet). A literacia constrói significados a partir de experiências e contextos (político, econômico, social, cultural), numa tentativa de estabelecer uma autonomia crítica em relação a estes veículos de comunicação.

Estas habilidades entretanto, estão sempre em constante evolução, pois é um processo, no qual o objetivo é a pessoa conseguir acessar as informações dos meios, entender as mensagens contidas nestas informações, pensar por conta própria sobre estas informações e fazer escolhas com base nestas informações. Isto faz com que tomemos decisões baseadas em pensamento crítico e proporciona uma melhor cidadania.

O Media Literacy for Active Citizenship (EAVI), uma entidade europeia sem fins lucrativos, se destina a estudar o conceito e pôr em prática a literacia midiática em todo o continente europeu. Eles criaram uma animação “Uma Viagem à Literacia dos Media”, para explicar, de forma simples e divertida, o que Literacia Midiática e como que ela está presente em nossas vidas. Você pode acessar o vídeo aqui e navegar nesta aventura.

POTTER, J. The State of Media Literacy, Journal of Broadcasting & Electronic Media, 2010, v. 54, n.4, p. 675-696. Disponível em: <https://goo.gl/UWDdba&gt;. 14 out. 2018

Quando a percepção é um mero nascer do sol

por Ramsés Albertoni

 

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Jonathan Crary (2013), em Suspensões da percepção, analisa o desenvolvimento histórico da abordagem dos estudos a respeito do problema da percepção, especificamente o universo da percepção visual, relacionando as recentes noções de percepção e atenção com as transformações ocasionadas pela transformação econômica e tecnológica da modernidade. O autor pondera que as transformações históricas relacionadas ao papel do corpo no processo da visão são constituintes dos processos de construção e de reformulação da subjetividade, rompendo com o conceito clássico de visualidade, inaugurando uma concepção abalizada na materialidade do corpo.

É preciso convir que os estudos e as descobertas científicas do século XIX abriram passagens para novas subjetividades, influenciando, inclusive, o campo das artes, haja vista as pesquisas de Étienne-Jules Marey, inventor do cronofotógrafo, cujo trabalho foi significativo no desenvolvimento da cardiologia, da instrumentação física, da aviação, da cinematografia e da ciência do trabalho fotográfico. A cronofotografia é uma técnica fotográfica que captura o movimento em vários quadros de impressão que podem ser organizadas, subsequentemente, como células de animação ou colocadas em camadas em um único quadro.

Assim, desde o século XIX questiona-se a tese do conhecimento/representação como uma categoria essencialmente cognitiva, o que abriu o conhecimento, inclusive, sobre os campos de estudos sobre a memória, que deixou de ser um processo mecânico e individual, ligado às construções de subjetividades, pois como afirma Henri Bergson, não existe percepção que não esteja saturada de lembranças, pois

“[…] o cérebro é uma imagem, os estímulos transmitidos pelos nervos sensitivos e propagados no cérebro são imagens também […] é o cérebro que faz parte do mundo material, e não o mundo material que faz parte do cérebro […] Nem os nervos nem os centros nervosos podem, portanto condicionar a imagem do universo.” (BERGSON, 1999, p. 13-14).

No século XX, o filósofo Maurice Merleau-Ponty já desenvolvera um importante contraponto ao cartesianismo científico ao descrever o corpo como o veículo do ser no mundo, estrutura fundamental, base de nossa existência, já que

“Ter um corpo é, para um ser vivo, juntar-se a um meio definido, confundir-se com certos projetos e empenhar-se continuamente neles. […] O que reúne as “sensações táteis” de minha mão e as liga às percepções visuais da mesma mão, assim como às percepções dos outros segmentos do corpo, é um certo estilo dos gestos de minha mão, que implica um certo estilo dos movimentos de meus dedos e contribui, por outro lado, para uma certa configuração de meu corpo.” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 208).

O filósofo não pretendeu, no entanto, inverter a relação corpo/alma, apenas contestar a dualidade atribuída aos indivíduos, concebendo-os em um sistema integrado, pois o homem é seu corpo e tem consciência do mundo por meio dele. Nessa perspectiva, o corpo deixa de ser um receptáculo passivo daquilo que o cerca para ser o meio de “ter o mundo”, porquanto, estando no mundo participamos dele de forma racional, estética, emotiva, percebendo-o através dos nossos sentidos. Com os olhos, sustento meu olhar em fragmentos de paisagem, sendo que alguns objetos retrocedem para a margem, acalmam, mas não deixam de estar presentes, e se constituem naquilo que vemos deles. Merleau-Ponty (1999), portanto, refuta a ideia de um pensamento puro, kantiano, e defende a percepção construída no contexto. Por conseguinte, a percepção do espaço e da coisa em sua espacialidade são problemas semelhantes, uma vez que o “corpo próprio” está atado a um certo mundo, ele é no espaço, a sua percepção se dá por sua lei de construção.

Crary (2013) define, dessa forma, a visão humana como o resultado de dois processos simultâneos e complementares, percepção e cognição, cujo relativismo no olhar é determinado pelas variáveis de vivências do observador e seu tempo histórico, dentre outras, pois a percepção visual é intrínseca ao movimento muscular do olho. O autor analisa a ideia de “visão subjetiva”, surgida na segunda metade do século XIX, como a noção de que a “nossa experiência perceptiva e sensorial depende menos da natureza do estímulo externo e mais da constituição e do funcionamento de nosso aparelho sensorial”. Posto isso, Crary (2013) assinala que a modernidade capitalista seria o agente manipulador que atua neste vácuo, onde a percepção humana passa a residir no corpo e se torna passível de mensuração, haja vista que a lógica de sistema dispõe que os indivíduos tenham a habilidade de mudar o foco de sua atenção constantemente, em virtude do grande espectro de estímulos multissensoriais recebidos diariamente. A par disso, o autor sugere que deva haver um nível permanente de atenção reduzida que contribuirá para uma experiência mais produtiva e consciente da vida como um todo.

Por conseguinte, Crary (2013), a partir das obras dos artistas impressionistas Édouard Manet, Georges-Pierre Seurat e Paul Cézanne, desenvolve sua investigação a respeito da atenção unificadora e desintegradora. O Impressionismo foi um movimento pictórico francês do século XIX, cujo nome é derivado da obra Impressão: nascer do sol (1872), de Claude Monet. Os jovens artistas procuraram romper com as regras da pintura vigentes até então, não mais se preocupando com os preceitos da Academia, dessa forma, suas pesquisas não mais se interessavam pelas temáticas nobres ou pelo realismo, mas em enxergar o quadro como obra em si mesma, em que a luz e o movimento, utilizando pinceladas soltas, tornam-se o principal elemento da pintura.

A primeira obra a ser analisada por Crary (2013) é o O Balcão (1868), de Manet, pois distancia o observador do sistema clássico de visão preso ao modelo de interioridade, afirmando-se como marco representativo da modernidade, justamente por sua externalidade de mundo. No quadro Na Estufa (1879), do mesmo artista, Crary (2013) aponta que se situam nesta pintura dois aspectos conflitantes da percepção moderna, quais sejam, a integridade da visão aliada ao conceito de unidade na percepção e a dinâmica fluida e desestabilizadora contida na dispersão dos olhares dos retratados. Com relação à obra Diante do Espelho (1877), o autor pondera que através de uma pincelada de ritmo intenso e o proeminente uso de cores não referenciais, Manet expande a atenção sensorial, removendo a rigidez dos objetos e propondo um jogo de eventos instintivos, móveis e amorfos.

Na análise da criação de Seurat, Crary (2013) disserta a respeito da construção calculada de novos modelos semânticos e cognitivos. No quadro Parada de Circo (1890) que, segundo o autor, revela e reprime, o artista constrói uma atenção cromática autossuficiente e subjetiva que constitui um reino provisório de liberdade para o observador e, por outro lado, aspira controlar suas respostas através de sugestões.

Por fim, ao analisar a obra Pinheiros e Rochas (1897), de Cézanne, Crary (2013) pondera que esse artista é um observador atento a tudo que ocorre de irregular na experiência perceptiva, desafiando seu próprio entendimento de mundo reconhecível, pois o artista problematiza a concepção de um campo de visão homogêneo e unificado, propondo um exercício visual que permite ler diversas áreas desconexas concomitantemente, eliminando as noções habituais de centro e periferia. Dessa forma, ao contrário de Manet e Seurat, que cominavam seus modelos aglutinadores a respeito da volatilidade da atenção, Cézanne insere uma nova perspectiva instável que redimensiona a percepção através do olhar.

Crary (2013), a partir das obras dos artistas impressionistas, desenvolve sua investigação a respeito da atenção unificadora e desintegradora, pois estes artistas posicionaram-se de modo único a respeito das rupturas, ausências e fissuras do campo perceptivo, criando um espaço instigante para que ocorram novas descobertas a respeito da indeterminação da percepção atenta e da instabilidade da atenção, porquanto fazem parte da inquirição das decorrências e reverberações da ascensão, desde o século XIX, de modelos de visão subjetiva e fisiológica.

Referências

BERGSON, H. Matéria e memória. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

CRARY, J. Suspensões da percepção: atenção, espetáculo e cultura moderna. São Paulo: Cosac Naify, 2013.

MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

Competência midiática: o caminho para o empoderamento e a cidadania

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A consolidação da cidadania de uma nação depende da forma como os indivíduos pertencentes às classes menos favorecidas se veem e se comunicam entre si e com a sociedade. Nos anos 60, Umberto Eco, em seu “Apocalípticos e integrados”, convidava a todos a reconhecer o mundo – em transformação desde a invenção da imprensa, quando as classes por ele denominadas de “subalternas” começaram a ter acesso à fruição de bens culturais – como o nosso universo. E, segundo ele, “se devemos operar em e para um mundo construído na medida humana, essa medida será individuada não adaptando o homem a essas condições de fato, mas a partir dessas condições de fato” (ECO, 1965, p.10).

Essa fala de Eco se contextualiza em um momento em que a sociedade se polarizava em dois grupos: um totalmente a favor da tecnologia e dos meios de comunicação de massa (integrados), e outro completamente contra (apocalípticos). Essas duas posições seriam, segundo o autor, “duas faces de um mesmo problema” (ECO, 1964, p.8), e o debate deveria ser pautado na importância do “momento histórico em que as massas ingressam como protagonistas na vida associada, corresponsáveis pela coisa pública” (ECO, 1965, p.23).

Cinquenta anos se passaram e a mesma discussão se dá em um ambiente digital, em que as classes menos favorecidas – que conseguem acesso a esse ciberespaço – são igualmente receptoras e emissoras de conteúdo. Nesse momento, “novas competências devem ser importadas, produzidas, instiladas permanentemente (em tempo real) em todos os setores” (LÉVY, 2007, p. 20). E é nesse contexto que se encontra uma abertura para a construção/consolidação da cidadania daqueles que antes não possuíam uma voz representativa dentro da sociedade.

Mas como promover o empoderamento de indivíduos com consciência crítica do meio? A nossa sociedade, que já vinha sendo manipulada pelos meios de comunicação de massa, possui condições de questionar, de se posicionar e criar valores por si só? Estamos preparados para o papel de atores em um mundo de comunicação ubíqua? São essas questões que norteiam os estudos sobre literacia (ou competência) midiática. Várias instituições ao redor do globo estudam o tema, e desenvolvem estratégias para sua implantação e aferição em vários níveis.

Potter, em seu artigo “The state of media literacy[1]”, publicado em 2010, faz um apanhado de vários conceitos expostos por organizações que tem seu interesse focado no tema. De acordo com o Center for Media Literacy (CML), competência midiática pode ser definida como “a capacidade de comunicar com competência em todas as formas de mídia, impressa e eletrônica, bem como acessar, compreender, analisar e avaliar as imagens, palavras e sons que compõem nossa cultura contemporânea de mídia de massa[2]” (POTTER, 2010, p.677). Outras instituições, segundo o autor, também reforçam a ideia de que a competência midiática nos ajuda a “reconhecer como as mensagens da mídia nos influenciam”, e a “desenvolver o pensamento crítico para promover a autoestima[3]” (POTTER, 2010, p.678).

Tendo em mente que o importante não é somente saber usar as ferramentas, entender como se dá e o que deve ser feito com o atual processo comunicacional em que todos (que possuem acesso ao ciberespaço) são atores, é preciso também cuidar para que os indivíduos não sejam meros replicadores de informações e de ideologias. A competência midiática deve se preocupar menos com “o que [o indivíduo vai] pensar; em vez disso, enfatizar o processo de ajudar as pessoas a chegarem a escolhas informadas que sejam consistentes com seus próprios valores através da prática ativa, reflexiva, colaborativa e autorrealizadora de recepção e produção[4]” (HOBBS, 2011, p. 427).

Podemos defender a competência midiática, então, como um instrumento de empoderamento, que promove o desenvolvimento de pensamento crítico e prepara o indivíduo para tomada de decisões com autonomia (HOBBS, 2011, p. 426), ou seja, garante a consolidação de sua cidadania.

 

Referências bibliográficas:

ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados. São Paulo: Perspectiva, 1965. (Debates, 19).

HOBBS, Renee. The state of media literacy: a response to Potter. Journal of Broadcasting & Electronic Media, Broadcast Education Association, v. 55, p. 419-430, 2011. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1080/08838151.2011.597594>. Acesso em 15 set. 2018.

LÉVY, Pierre. A inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço. São Paulo: Loyola, 2007.

POTTER, W. James. The state of media literacy. Journal of Broadcasting & Electronic Media, Broadcast Education Association, v.54, p.675-696, 2010. Disponível em : < https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/08838151.2011.521462>. Acesso em 15 set. 2018.

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Notas:

[1] “A situação da literacia midiática” (ou competência midiática) – tradução nossa.

[2] Tradução nossa.

[3] Tradução nossa.

[4] Tradução nossa.

Entendendo o que é Literacia Midiática

por Aline Pinna

 

Antigamente, o conceito literacia atribuía-se a quem soubesse a ler e a calcular. Hoje, esse termo é muito mais extenso, já que se refere a uma leitura de contextos, de situações históricas vividas na contemporaneidade, isto é, a uma leitura de mundo. O termo literacia abrange todas as áreas, até mesmo a midiática.

Na atual sociedade da convergência na qual vivemos, a Literacia Midiática tem se tornado um conceito muito relevante a ser discutido. Esse assunto vem sendo estudado em diversos países da Europa, desde os anos de 1980, por um grupo de estudiosos que argumentam sobre as diretrizes básicas para uma literacia das mídias. A Literacia Midiática é conhecida em vários países por nomes distintos. No Reino Unido e nos Estados Unidos da América (EUA) chama-se Media literacy; em Portugal fala-se Literacia dos media; na Espanha trata-se de Competência midiática; e, no Brasil de Letramento midiático.

Podemos entender que a Literacia Midiática é uma alfabetização audiovisual, ou seja, do mesmo modo que aprendemos a ler e a escrever, nós aprendemos, também, a ler e ver as imagens. Porém, esse ver não é apenas abrir os olhos, mas sim, ter uma posição crítica sobre aquilo que é construído e que nos rodeia.

Em outras palavras, compreendemos que é a capacidade que as pessoas têm de acessar as mídias, de analisar e avaliar os conteúdos que são veiculados nos meios. Considera-se, ainda, a capacidade de produzir conteúdos (mensagens) para serem exibidos nas mídias hoje em dia e, também, de compreender a forma como as mídias filtram as percepções e crenças, como elas formatam a cultura popular e como elas influenciam nas escolhas individuais.

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É através da Literacia Midiática que as pessoas poderão ampliar seus conhecimentos, pois ajuda a formar e desenvolver o pensamento crítico e a postura diante das situações sociais e políticas. O indivíduo passa a ter competência e habilidades de se posicionar frente a questões tão cotidianas, já que ele passa a selecionar e a focar as informações para uso e para a transformação e intervenção na comunidade, na sociedade, na família, ou seja, no dia a dia.

Contudo, notamos que esse conceito midiático compreende a capacidade de acessar, analisar e avaliar o poder de imagens, sons e mensagens; de comunicar de forma competente através das mídias disponíveis; e, habilitar os cidadãos para o pensamento crítico e a resolução criativa de problemas a fim de que possam ser consumidores sensatos e produtores de informação.

Conclui-se que quanto mais tivermos elementos que nos ajudem a decodificar essas imagens, melhor preparados estaremos para receber, de certa forma, o mundo que nos adentra através desses meios, contribuindo com a formação do olhar crítico e interventivo (cidadão e profissional), além da elaboração de políticas públicas. Assim, é como se fosse um dos pré-requisitos para o exercício de uma cidadania ativa e para o usufruto dos direitos de liberdade de expressão e informação, sendo essencial na construção e manutenção da democracia.

 

Referências:

POTTER, W. James. The State of Media Literacy. Disponível em: <https://issuu.com/nokaav/docs/potter_the_state_of_media_literacy>. Acesso em: 10 de outubro de 2018.

Gabriela Borges – O que é Literacia Midiática. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=xD8gm50I2Gc>. Acesso em: 4 de outubro de 2018.

Gente que Transforma – O que é Literacia? Parte 1. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=J0X0WgeAKbQ>. Acesso em: 4 de outubro de 2018.

Literacia Midiática – Mirian Tavares. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=scHYTtEzFmQ>. Acesso em: 4 de outubro de 2018.

 

 

O diálogo interdisciplinar entre Literacia Midiática e Saúde Mental

por Matheus Bertolini

A saúde mental é compreendida como uma complexidade que aglomera as relações entre o sujeito com exigências e complicações estabelecidas pela vida ou por um conjunto de modos estruturados com as capacidades, desejos, emoções, ideias, ações individuais e coletivas. Em uma perspectiva mais panorâmica, a saúde mental descreve as cognições e emoções saudáveis das pessoas, em detrimento ou não de uma doença mental. Todavia, a Organização Mundial da Saúde (OMS) acredita que não existe uma definição que cerque e conceitue efetivamente tal temática, mas parte do pressuposto de aspectos plurais somados à subjetividade na construção da mesma.

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A abordagem comunicacional frente esse recorte da saúde mantem-se recheada por mitos e tabus que não possibilitam uma circulação efetiva, preventiva e consciente em todas as camadas sociais e meios para um diálogo. Nesse sentido, a comunicação e a informação são munições para uma “revolução” nos estilos de vida e em barreiras construídas entre a sociedade e os pacientes atendidos. A Literacia Midiática, compreendida como uma atribuição comunicacional qualificativa, é uma catalisadora para o empenho de profissionais, familiares e, inclusive, dos pacientes na recepção e proliferação de conteúdos corretos do tema.

O autor W. James Potter, em 2010, menciona pesquisas realizadas com intuito de testar a alfabetização da mídia com a saúde, a partir de estudos que relacionam a publicidade com as representações construídas e as possíveis interferências. Nessa exemplificação ele menciona a campanha contra o tabagismo e as resultantes da exposição desse anúncio, de forma que houve o conhecimento do assunto e a distribuição de um conteúdo de prevenção. Com esse mesmo trabalho, Potter trás pesquisas que também relacionam a literacia com os estereótipos construídos pela mídia, levantando a aceitação das pessoas e o impacto que a desconstrução pode resultar em abordagens comunicacionais e, assim, evitar a disseminação de atitudes preconceituosas.

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Nessa ótica, precisamos refletir como a comunicação tem interferido na abordagem da saúde mental nos mais diversos gêneros comunicacionais, como por exemplo, notícia, reportagem, ficção, entre outros. A atenção psicossocial abraça o estudo na compreensão que a saúde mental não é limitada à existência do ser em sua individualidade, mas a presença de um sujeito sofrimento, um estado de relação inter e intra relacional entre particularidades e, também, coletividades. Feitos esses que são iminentemente evidenciados pela comunicação, ou melhor, pela indevida abordagem ao referido contexto.

Portanto, assim como a Literacia, a saúde mental também pode ser compreendida como um valor interdisciplinar. Em diferentes proporções e alcances, ambos possuem conexões que alastram-se em diferentes campos e potencializam-se justamente pela presença em áreas plurais e pela ação coletiva em prol de um designo comum. Por fim, diferentemente de alguns produtos que inserem o assunto de maneira equívoca, existem títulos que abordam a discussão com um propósito de descentralizar um enredo tipicamente construído e cercado pelo estereótipo.

A obra Holocausto Brasileiro, da jornalista Daniela Arbex, surgiu como um livro no ano de 2013. Ele é composto pela história do Hospital Colônia de Barbacena e os maus tratos que envolviam o modelo manicomial. Esse título é um exemplo da realidade do tratamento dos pacientes em um modelo passado, mas sem a glamourização ou outra apropriação cultural e social dos envolvidos. Do livro, houve a expansão para um documentário e, assim, tornou-se um bom exemplo para o aprendizado a partir de uma obra literária ou audiovisual para os profissionais e familiares que estão submetidos a outro modelo de tratamento atualmente, mas podem compreender a inserção desse sujeito em um momento social que tornou-se histórico para a construção e busca pela assistência e inserção desse paciente no contexto atual.

POTTER, J. The State of Media Literacy, Journal of Broadcasting & Electronic Media, 2010, v. 54, n.4, p. 675-696. Disponível em: <https://goo.gl/UWDdba&gt;. 14 out. 2018

 

Literacia midiática: por uma comunicação mais assertiva!

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Entre utopias e distopias

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por Ramsés Albertoni

 

Os conceitos utopia e distopia fomentam a discussão acerca da realidade; enquanto o primeiro conceito pode ser compreendido como a ideia de uma civilização ideal, imaginária, perfeita e, por isso, inalcançável, o segundo é geralmente caracterizado por autoritarismo, opressão e controle por parte de um Estado totalitário. Dessa forma, as distopias seriam utopias às avessas, cujas criações literárias retratam o futuro de uma maneira negativa, em que a tecnologia é utilizada como ferramenta de controle. Enquanto nas sociedades utópicas o indivíduo é sempre inocente até que se prove o contrário, nas sociedades distópicas o indivíduo é sempre culpado, mesmo que se comprove que não o seja.

Dentre as utopias podemos citar República (PLATÃO), Cidade de Deus (SANTO AGOSTINHO), Nova Atlântida (BACON), Cidade do Sol (CAMPANELLA), Utopia (MORUS), Cândido ou o otimismo (VOLTAIRE), Notícias de lugar nenhum (WILLIAM MORRIS), Horizonte perdido (HILTON), Uma utopia moderna (H. G. WELLS), Islândia (TAPPAN WRIGHT), Peter e Wendy (BARRIE), Erewhon (BUTLER), Ecotopia (CALLENBACH), O fim da infância (CLARKE), Herland (GILMAN).

Com relação às distopias, Fahrenheit 451 (BRADBURY), Laranja mecânica (BURGESS), O caçador de androides (DICK),  A ilha e Admirável mundo novo (HUXLEY), O processo (KAFKA), 1984 (ORWELL), A geração da utopia (PEPETELA), White Mars (ALDISS), Hominids (SAWYER).

A história das narrativas distópicas se inicia no século XIX, com o conto A nova utopia, de Jerome K., publicado em 1891, e considerado a primeira narrativa distópica da literatura, seguido pelos romances O tacão de ferro, de 1907, de Jack London, e Nós, de 1924, de Eugene Zamyatin. Situada no final do século XIX, a narrativa de Jerome K. satiriza o protótipo de igualdade que poderia levar ao fim da individualidade dos homens, cujo protagonista, ao acordar, percebe que está no futuro, no século XXIX, sob um novo regime político autoritário que anula as individualidades, centralizando toda a autoridade existente na figura do Estado. London descreve uma insurreição ocorrida entre 1914 e 1918, que é analisada por um observador do século XXVII, retratando o desenvolvimento da classe operária estadunidense e seus embates com a oligarquia, sob o ponto de vista da personagem Avis Everhard, jovem de família rica que se apaixona por Ernest, um socialista que se torna líder dos revoltosos. Zamyatin narra as impressões de um cientista sobre o mundo em que vive, uma sociedade aparentemente perfeita, mas opressora, e seus conflitos, ao perceber as suas imperfeições ao travar contato com um grupo opositor que luta contra o Benfeitor, o regente supremo da nação.

Já a realidade do mundo distópico do romance A Caverna, de José Saramago, designa uma versão do capitalismo clássico, ou melhor, um terceiro estágio, o do capitalismo multinacional, sucessor do capitalismo monopolista e do primevo capitalismo de mercado. A nova divisão internacional do trabalho, a dinâmica vertiginosa das transações bancárias, as novas formas de inter-relacionamento das mídias são manifestações visíveis do capitalismo tardio. Por conseguinte, Saramago apodera-se do mundo através do romance e da sua linguagem, cujo processo transforma em relato uma realidade. O romance é uma narrativa que permanece no núcleo da tensão sem assinalar solução alguma, pois o autor trabalha de forma estética a crise contemporânea, refletindo sobre a vida cotidiana sem apontar para qualquer ascese ou transcendência. Dessa forma, analisa-se a incapacidade de se desenvolver uma consciência moral autônoma e a inclinação à submissão cega e passiva a formas de domínio autoritárias, pois as consciências se tornaram efêmeras e frágeis em relação a um mundo de fluxos e instabilidades.

A personagem Marçal, vigilante no Centro Comercial é, em sua totalidade, um representante da tecnologia de poder desse universo constituído por um conjunto de regulamentos disciplinares constituído para controlar e corrigir as operações corporais, porquanto o próprio corpo humano é idealizado como um elemento do espaço em que se situa, é um espaço compósito e hierarquizado que sofre o investimento do exterior, pois é pensado como um território, um conjunto de “lugares de culto” em que se vislumbra os próprios efeitos da construção do espaço totalitário em que se agencia uma maquinaria de poder, uma tecnologia política do corpo. A descritibilidade totalitária exercida pelo Centro é o funcionamento de uma nova tecnologia do poder, uma nova anatomia política do corpo.

Neste romance, o controle é exercido por amplos recursos de vigilância, pois é mister um dispositivo, um aparelho que obrigue pelo olhar, cujas técnicas de visão permitam induzir a efeitos de poder. Este aparato tecnológico é representado pelo “panóptico descentralizado”, ou seja, um mecanismo de formação de saber conectado a um exercício de poder que se exerce na invisibilidade, impondo um princípio de visibilidade absoluta. A arquitetura estratégica do panóptico descentralizado age como um laboratório de poder, cujo aumento de saber é correlato a um aprofundamento do controle da vida cotidiana dos indivíduos, reduzidos a consumidores e trabalhadores. Difundido no corpo social, tal estratégia fatal torna-se uma função generalizada.

O dispositivo descentralizado desse panóptico contemporâneo é a configuração e a confirmação da sociedade do consumo e da disciplina, da indústria cultural, do mundo das sombras e da ilusão, da cópia, da anulação do indivíduo. O que importa é tornar mais forte as forças sociais. Disciplina e vigilância generalizada são as tecnologias formadoras da sociedade do espetáculo e o Centro é uma parábola cruelmente realística desta sociedade em que estamos inseridos, cujo processo de controle unilateral compara e reúne diversas empresas que constituem uma rede de controle economicamente centralizado.

Para selar esse controle, um passo é necessário, o efetivo monopólio da propaganda, da notícia, da publicidade, da literatura e, acima de tudo, dos canais de comunicação. Esses vários setores têm diversos pontos de origem e representam vários interesses iniciais; historicamente, porém, têm estado frouxamente ligados desde o início e, dentro da estrutura metropolitana, finalmente entram em coalizão, dando um fim comum e a marca da autenticidade e de valor ao estilo de vida que emana da metrópole. Portanto, as forças que determinam o que acontece com as produções da indústria cultural no capitalismo tardio são esmagadoramente exógenas, predominantemente tecnológicas, como seria previsível numa era de admiráveis revoluções tecnocientíficas.

Nesse sentido, cabe explorar criticamente a concepção da tecnologia como agenciamento de meios para a consecução de fins. Feenberg (2002) propõe uma interpretação da tecnologia, cujo enfoque prolonga as análises da Escola de Frankfurt, aspirando “reconstruir a ideia de socialismo com base numa radical filosofia da tecnologia”. Por conseguinte, a tecnologia deve ser interpretada como um fenômeno tipicamente moderno na vigência do capitalismo tardio, pois constitui a “estrutura material” da Modernidade, não sendo um mero instrumento neutro.

Por conseguinte, a racionalidade técnica incorporada pelo Centro do romance A Caverna, é a racionalidade da própria dominação, da colonização do mundo da vida pelo sistema econômico, conforme Habermas (1999), onde nada deve ser produzido e comercializado sem corresponder às tabelas do consumidor padrão, do público alvo, pois, em seu lazer, as pessoas devem se orientar por essa unidade que caracteriza a produção, não havendo nada mais a classificar que não tenha sido antecipado em tal esquematismo. A revolução tecnológica está tão entranhada na consciência do consumidor, ou do prosumidor, conforme Scolari (2013), que o “efeito de novidade” se tornou o principal recurso de vendas, pois se crê que o novo equivale ao categoricamente revolucionário, porquanto se a economia transforma o mundo, ela o transforma simplesmente como o mundo da economia que perfaz a exibição incessante do poder econômico sob a forma da mercadoria espetacular que foi levada a uma espantosa inversão do seu tipo de justificativa enganosa.

Referências

FEENBERG, A. Transforming technology. Oxford: Oxford University Press, 2002.

SARAMAGO, J. A caverna. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

SCOLARI, C. A. Narrativas transmedia: cuando todos los medios cuentan. Barcelona: Deusto, 2013.