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Arquivo mensal: novembro 2018

Da introdução do jornalismo na Web à recirculação das notícias nas redes sociais

por Aline Pinna

 

Em 2002, os serviços de redes sociais ainda não eram existentes. Assim, foi através dos blogs que ocorriam as primeiras experiências em webjornalismo participativo/colaborativo. Com o passar dos anos, houve a evolução da informática que possibilitou a criação de condições para a emergência de aplicações das técnicas de computação distribuída. Além disso, surgiu o recurso de inteligência artificial ao jornalismo.

Variadas ferramentas e recursos foram instalados no dia-a-dia dos indivíduos. Os jornalistas também tiveram que se adaptar a modernidade. O ritmo de trabalho passou a ser ditado pela tecnologia e o repórter teve que acompanhar a velocidade do sistema, o que incluiu a diminuição dos contatos interpessoais com as fontes e com seus colegas. Assim, o resultado foi a precarização do trabalho nas redações e uma preocupação ainda maior com a transparência nos textos noticiosos e com a sua objetividade. Apesar dessas novidades, o repórter ainda é visto como um importante defensor da democracia, antagonista do Estado e dos poderes constituídos.

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As tecnologias de interação intercedida pelo computador, mídias locativas, análise de bases de dados e narrativa hipertextual assumiram o primeiro plano na atividade jornalística. Frequentemente as notícias passaram a ser produzidas em termos de sua utilidade para a distribuição em smartphones, notebooks e tablets. Deste modo, a computação, cada vez mais, é inserida como base das rotinas produtivas na imprensa, em lugar do significado político e social dos acontecimentos.

Nos últimos anos, a mídia tem buscado, constantemente, explorar a inteligência coletiva disponíveis nas redes telemáticas. Outra questão importante nesse setor é o uso da inteligência artificial na apuração e redação de notícias. De acordo com Träsel (2013, p. 203), adotando-se a inteligência artificial evita a “irrupção da criatividade, da indignação, da empatia, da contradição, enfim, da política no cotidiano ordeiro das redações de hoje em dia”. Logo, as matérias são produzidas instantaneamente e sem equívocos factuais, embora, talvez, sem aquele sabor literário que o jornalista introduz no decorrer do texto.

A partir dessas informações, hoje, encontra-se uma nova forma de distribuição das notícias. Com a estrutura descentralizada das redes sociais, compreende-se que há uma nova maneira de uso das redes graças aos seus interagentes. Estes podem filtrar e comentar as notícias e contribuir para o processo jornalístico. Podemos ter como exemplo o Twitter. Este site de rede social é uma plataforma onde os usuários podem postar atualizações de até 140 caracteres. Além disso, ele também pode ser visto como uma ferramenta para compartilhamento e troca de informações. Segundo Zago (2013, p. 213), “o Twitter poderia ser considerado mais um espaço para o compartilhamento de informações do que propriamente uma rede social”. Nota-se, então, um caráter de site no qual ele pode ser apropriado por seus usuários para o jornalismo.

Percebemos isso no momento em que o Twitter modificou uma questão importante na sua tela inicial. Antigamente, a sua pergunta inicial era “O que você está fazendo?”. Nos últimos anos, mudou-se para “O que está acontecendo?”. Tem-se essa alteração por conta de sua apropriação para a circulação de conteúdos.

Do mesmo modo com que os meios de comunicação se apreendem desses ambientes para distribuir notícias, os interagentes também podem usar sites de redes sociais para comentar (expressar opinião, reagir com humor a determinadas situações jornalísticas, criticar) e filtrar (publicar pequenas notas, inserir links ou manchetes) notícias, vindo a contribuir para a recirculação desses conteúdos jornalísticos.

Conforme Zago (2013), o jornalismo pode ser compreendido como um procedimento constituído em quatro fases: apuração, produção, circulação e consumo. Essas etapas, muitas vezes, se sobrepõem e se complementam, ou seja, uma caminha lado a lado da outra. Porém, Zago (2013) ainda comenta que o processo final não termina no consumo. Ele pode continuar com o acontecimento sendo novamente posto em circulação pelas mãos dos interagentes, que filtram e comentam as notícias originalmente postas em circulação pelos veículos. Essa fase é nomeada de recirculação na medida em que a etapa de circulação pode continuar, através de espaços públicos mediados após o consumo.

Com essa nova fase, não caracteriza que antes a informação não recirculava após o consumo. As informações recirculavam, mas de forma “manual”, isto é, o famoso boca-a-boca. Essa “nova” recirculação diz respeito ao fato de que nos espaços públicos mediados, como o Twitter, é mais fácil e prático de se comentar e filtrar conteúdos, por conta da velocidade incontrolável que as notícias são compartilhadas.

Tendo em vista essas características, Zago (2013, p. 215) cita Correia (2010, p. 7) no momento em que ele argumenta que a principal modificação do sistema de circulação jornalístico em redes virtuais seria o fato de que esses ambientes “constituem novos fluxos de informações onde emissão, recepção e resposta á emissão acontecem pelo mesmo ‘canal’, pelo mesmo meio”.

Portanto, apesar de seus aspectos de site de rede social, pode-se entender que o Twitter é de fato mais um meio comunicacional do que propriamente uma rede social, onde alia informação com interação e/ou interatividade, conteúdos (notícias) com comentários, veículos com interagentes e temas triviais com acontecimentos jornalísticos.

 

Referências:

TRÄSEL, Marcelo. Toda resistência é fútil: o jornalismo, da inteligência coletiva à inteligência artificial. p. 191-210. In: PRIMO, Alex (organizador). Interações em rede. Porto Alegre: Sulina, 2013. (Coleção Cibercultura)

ZAGO, Gabriela da Silva. Da circulação à recirculação jornalística: filtro e comentário de notícias por interagentes no Twitter. p. 211-232. In: PRIMO, Alex (organizador). Interações em rede. Porto Alegre: Sulina, 2013. (Coleção Cibercultura)

Ciberespaço, cultura participativa e memória

Por: Isabella Gonçalves

Ao estudar o imaginário e a memória, é possível traçar uma relação entre eles. Ambos não são estáticos, sendo, portanto, construídos e subjetivos. Dessa forma, podem sofrer transformações ao longo do tempo, influenciados pelo contexto social. Tratam-se, nesse sentido, de “bacias semânticas”, “espíritos do tempo”, “obras abertas”, que se transformam a partir da influência das instituições sociais e de indivíduos. Em seu livro publicado em 2003, Juremir Machado da Silva discorre acerca das Tecnologias do Imaginário, definindo-as como dispositivos (Foucault) de “intervenção, formatação, inferência e construção das “bacias semânticas” que determinarão a complexidade (Morin) dos trajetos antropológicos de indivíduos ou grupos” (SILVA, 2003, p.20).

O pesquisador define as diferentes tecnologias como tecnologias do imaginário, por serem elas as responsáveis por atuarem na construção do imaginário social. Pensando sobre isso, é possível refletir, então, acerca da incipiência do conceito “tecnologias da memória”, já que a partir da primeira delas, a escrita cuneiforme, a relação social do homem com a memória se transformou profundamente. Naquela época, os sumérios utilizavam a escrita para arquivar informações matemáticas do governo, tomando cuidado, desde então, para o seu armazenamento.

Em contraste, anteriormente, com os gregos, era necessário um sistema de memória cerebral, utilizado para facilitar a lembrança de determinadas informações. Não havia, para tanto, a confiabilidade na palavra escrita, mas em associações feitas a partir da relação do homem com emoções, espaços e objetos, responsáveis por trazer a lembrança à memória humana. Mas os sumérios promoveram a possibilidade do arquivamento, o que mudou essa relação, já que a partir de então foi possível confiar em um outro para lembrar. Para isso, entretanto, era necessário espaço, sendo preciso calcular os custos de tal preservação. A pergunta da vez era, dessa forma: “o que podemos guardar?”, já que não era possível armazenar tudo, diante da ausência de espaço e de capital (RUMSEY, 2016).

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No século XXI, a relação do homem com a memória se transformou ainda mais. A partir do ciberespaço, vivenciamos a lacuna material, diante do emaranhado de dados, no qual não há objetos, apenas bits. A Web 2.0, protagonista desse contexto, permitiu o início de uma cultura participativa (JENKINS, 2014), na qual o sujeito anônimo ganhou voz, podendo também produzir conteúdo. Além disso, a partir do intercruzamento da dados, houve o surgimento de uma inteligência coletiva (LÉVY, 2003), responsável por transformar as mais diversas relações sociais, inclusive a dialética do lembrar e do esquecer e, naturalmente, a própria memória coletiva, que se tornou fragmentária, não sendo ela tão influenciada por instituições, como outrora. Nesse mundo digital, no qual os arquivos ganham as nuvens e são visualizados em uma tela repleta de pixels, a pergunta de ordem mudou. Antes, nos preocupávamos com o que era necessário guardar. Hoje, a questão que parece urgente é refletir sobre o que é necessário esquecer.

Referências

JENKINS, Henry. Cultura da Conexão: criando valor e significado pela mídia propagável. São Paulo, 2014.

LÉVY, Pierre. A inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço. São Paulo: Loyola, 2003.

RUMSEY, Abby. When are no more – how digital memory is shaping our future? London: Bloomsbury, 2016.

SILVA, Juremir Machado. As Tecnologias do Imaginário. Porto Alegre, Sulina, 2006.

Educação como antídoto da propagação de notícias falsas

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Estamos sendo bombardeados a todo o tempo por muitas informações que causam confusão e dúvida. Ficamos sem saber em que informações confiar e quais compartilhar. Isto gera preocupação e um desafio a ser enfrentado. Mas então qual seria a melhor saída desta situação? Para muitos, a resposta está na educação.

De acordo com uma pesquisa do Indicador de Analfabetismo Funcional (Inaf), o Brasil possui cerca de 30% da população entre 15 e 64 anos, analfabeta funcional. Ou seja, três entre cada dez brasileiros têm limitação para ler, interpretar textos, identificar ironia e fazer operações matemáticas em situações da vida cotidiana.

O Inaf ainda indica que estes analfabetos funcionais são usuários frequentes das redes sociais. Entre eles, 86% usam WhatsApp, 72% são adeptos do Facebook e 31% têm conta no Instagram. E se comparado com o grupo de alfabetizados, a diferença é pequena, uma vez que 89% dos proficientes utilizam o Facebook.

O problema aqui encontrado é a limitação a estas plataformas pelos analfabetos funcionas. Geralmente, essas pessoas não vão tirar proveito das redes sociais para conseguir informações, garantir direitos, porque não conseguem discernir conteúdos. Ainda de acordo com o Infa, quanto maior o domínio do alfabeto, maior o uso das redes sócias.

Entretanto, redes como o Facebook está repleto de textos, imagens, e exige escrita, por isso revela uma potência desses suportes digitais como estimulador do avanço do alfabetismo. Já no WhatsApp quase não há diferença de uso entre os grupos divididos por nível de alfabetização. Enquanto 92% dos analfabetos funcionais enviam mensagens escritas, o índice é de 99% entre os alfabetizados; 84% dos analfabetos funcionais compartilham textos que outros usuários enviaram, já 82% dos alfabetizados fazem isso, de acordo com o Infa.

De uma certa maneira, podemos dizer que o brasileiro aderiu ao WhatsApp, uma vez que é uma alternativa ao SMS, que é cobrado pelas operadoras de telefonia celular. Diversas classes sociais utilizam a plataforma, do médico ao entregador de pizza, do executivo à faxineira, mas ninguém foi treinado, e cada um usa e propaga da forma que consegue compreender.

Para o The News Literacy Project (NLP), um projeto de alfabetização midiática estadunidense, um dos reflexos do baixo nível de alfabetismo no contexto digital é que estas pessoas ficam mais vulneráveis à desinformação, especialmente memes, imagens manipuladas e usadas em contexto falso.

Essas pessoas têm uma capacidade limitada para checar através de pesquisa e leituras paralelas, e seu acesso a jornalismo impresso de qualidade é limitado.  Segundo o NLP, o primeiro passo é garantir que as pessoas, independentemente de seus níveis de leitura, compreendam que a desinformação pode vir por diferentes canais, incluindo imagens manipuladas e vídeo e se espalhar rapidamente.

Até mesmo pela dificuldade de interpretação de texto, as mensagens falsas se propagam muitas vezes por mensagens em áudio. Muitas pessoas acreditam nas fake news porque não têm bagagem, não têm senso crítico, e quando há uma escolaridade precária, elas ficam muito mais manipuláveis. Para mudar o nível de proficiência é necessário educação de qualidade. Uma educação que desloque o aluno de um nível mais coloquial para entender ironia, interpretação de texto, capacidade de distinguir fato de opinião. A alfabetização midiática é uma série de técnicas ensinadas a crianças e jovens para melhorar a capacidade de discernimento sobre o que é informação confiável e o que é desinformação.

Hoje no Brasil fala-se muito sobre fake news e vem sendo utilizada como arma política. Tornou-se uma expressão usada para se referir a coisas com as quais as pessoas simplesmente não concordam, seja uma reportagem de jornal, seja uma coluna de opinião que não reflete nossa crença. Todos possuem as próprias tendências e pontos de vista, então fica fácil rejeitar um olhar que seja contrário ao que acreditamos chamando-o simplesmente de fake news.

Isso sempre aconteceu, mas agora esse problema parece ampliado pela facilidade com que notícias falsas podem ser criadas e pela velocidade com que essas notícias circulam. As pessoas não prestam a mesma atenção às correções e erratas tanto quanto prestam às notícias falsas. Então, quando encontramos com uma informação que casa com nossas tendências, chamamos de confirmação de viés, torna-se mais provável que tomemos essa informação como verdadeira e que a tomemos por seu valor de face, em vez de checar duas vezes sua veracidade. Daí a importância, segundo o NLP, de focar a alfabetização midiática em crianças e jovens, pois talvez estes tenham menos vieses em relação a certos assuntos, informando-os sobre a importância de que tenham consciência desse vieses e, ainda assim, façam checagens duplas dos fatos.

Referências:

CRARY, Jonathan. Suspensões da percepção: atenção, espetáculo e cultura moderna. São Paulo: COSAC NAIFY, 2013.

POTTER, J. The State of Media Literacy, Journal of Broadcasting & Electronic Media, 2010, v. 54, n.4, p. 675-696. Disponível em: <https://goo.gl/UWDdba&gt;. 14 out. 2018

O papel do sujeito na era digital

por Cíntia Xavier

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            Na Era digital, o avanço das tecnologias de comunicação permitiu que novas mudanças transformassem o sujeito e o meio em que vive. Houve uma grande mudança no hábito de consumo de conteúdos midiáticos. Com o aumento do acesso à internet, a popularização dos smartphones, a disseminação dos sinais wi-fi e as redes sociais online, as pessoas passaram a viver conectadas. Assim, o aperfeiçoamento das tecnologias tornou o ambiente virtual ainda mais interativo, participativo e colaborativo.  Logo, ao se apropriar do novo meio o sujeito vai em busca de diferentes experiências de entretenimento e de informação.

Novas perspectivas trazidas pela internet contribuem para uma mobilização de sujeitos que procuram e trocam informações, mas também querem interagir com outras pessoas nesses ambientes. O sujeito, antes passivo, assume uma posição ativa no consumo e produção de informações nas redes. Ele não quer apenas contribuir, mas se tornar protagonista da ação, quebrando então o paradigma de recepção que os meios de comunicação, até então, consideravam. Assim, diante desse novo cenário Thompson (1998) explica que a recepção deve ser entendida como um processo rotineiro em que os sujeitos se apropriam das mensagens de modo a ressignificá-las.

Jenkins (2009) pontua que o conteúdo que circula pelas mídias depende também da participação dos consumidores para intensificar sua circulação. Logo, o sujeito se apropria do conteúdo e confere novo significado, o que pode estimular a interação. “A convergência representa uma transformação cultural, à medida que consumidores são incentivados a procurar novas informações e fazer conexões em meio a conteúdos midiáticos dispersos” (JENKINS, 2009, p. 28). Ainda segundo o autor: “a convergência altera a relação entre tecnologias existentes, indústrias, mercados, gêneros e públicos (…) refere-se a um processo, não a um ponto final.” (JENKINS, 2009, p. 43).

Assim, frente a convergência midiática e o sujeito fazendo parte do processo, observamos a preocupação de programas televisivos, como por exemplo, Master Cheff, Big Brother Brasil, Dança dos Famosos, entre outros, na mensuração da opinião dos telespectadores. De olho na audiência, os grupos de comunicação estimulam a participação e a interação com o público na rede, para que o mesmo comente e vote no seu personagem favorito. Mais que isso, o sujeito que antes se contentava em apenas sentar-se em frente à televisão e assistir a um programa, quer agora participar, opinar, interagir e conversar com a emissora. Além disso, ele busca um produto midiático que dê a ele conteúdos que vão além de um único dispositivo de distribuição e que possibilite um engajamento com o público que se apropria de conteúdos disponibilizado pelo meio.

Para Jenkins (2008), ao invés de fazer uma separação entre produtores e consumidores midiáticos, podemos definir os indivíduos como participantes que interagem uns com os outros a partir de novas regras. O sujeito ativo e sua adesão à rede dão a ideia de cultura participativa, definida por Jenkins como consumidores de mídia, que assumem o papel de participantes que interagem para formar novos conteúdos. Seriam “consumidores que também produzem, leitores que também escrevem e espectadores que também participam” (JENKINS, 1992, p. 208).

A revolução digital trouxe consigo uma transformação no comportamento do receptor. Logo, conclui-se que os sujeitos são capazes de compreender e disseminar o conteúdo. No entanto, a partir do aprimoramento das tecnologias, o mesmo reivindica seu papel na construção de novos conteúdos. Ao sujeito cabe agora o espaço de protagonista, não apenas o papel de receptor de conteúdo.  Assim, o público dispõe de uma maior autonomia não apenas para consumir a demanda de seu interesse, mas de contribuir com o material que está disponível na rede.

JENKINS, Henry. Cultura da convergência: a colisão entre os velhos e novos meios de

comunicação / tradução Susana Alexandria. – 2a ed. – São Paulo: Aleph, 2009.

THOMPSON, J. B. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia.  Petrópolis: Ed. Vozes, 2011.

Cultura participativa e convergente: o cenário que favorece o nascimento dos influenciadores digitais

Disponível em: https://casperlibero.edu.br/wp-content/uploads/2017/09/Artigo-5-Communicare-17-Edi%C3%A7%C3%A3o-Especial.pdf Acesso em: 12 de novembro de 2018.

Um novo sujeito para cada nova tecnologia interiorizada

Jonathan Crary em Suspensões da percepção afirma que “os modos pelos quais ouvimos, olhamos ou nos concentramos atentamente em algo têm um profundo caráter histórico” (CRARY, 2013, p.25). Walter ONG já havia relacionado as transformações da consciência humana com a evolução das culturas orais para a escrita. Segundo ele:

Sem a escrita, a mente letrada não pensaria e não poderia pensar como pensa, não apenas quando se ocupa da escrita, mas normalmente, até mesmo quando está compondo seus pensamentos de forma oral. Mais do qualquer outra invenção individual, a escrita transformou a consciência humana (ONG, 2013, p.93)

Ong defende ainda que, ao deslocar os sentidos da fala-ouvido para o da visão, a escrita conseguiu transformar não só a própria fala, mas o pensamento humano (ONG, 2013, p.100). Os efeitos de novas tecnologias no cotidiano “não ocorrem aos níveis das opiniões e dos conceitos: eles se manifestam nas relações entre os sentidos e nas estruturas da percepção, num passo firme e sem qualquer resistência”. (MCLUHAN, 1969, p.107).

Ainda em seu livro, Crary cita Liev Manovitch, que destaca como o papel do trabalhador se altera perante as novas tecnologias. Ele ilustra sua fala com a passagem da sociedade industrial para a sociedade pós-industrial, onde a força de trabalho deixa de ser o corpo para ser a mente desse trabalhador, desenhando “um deslocamento da ênfase do humano para a máquina” (CRARY, 2013, p.15). O homem não foi substituído pela máquina, mas “o papel do trabalhador se transforma, passando a consistir, então, na observação e na espera, na espera de que algo aconteça” (CRARY, 2013, p.15).

A experiência provocada pela interiorização da tecnologia oferece o desenvolvimento de novas competências ao homem. No século XVI, os livros se popularizaram para se adaptar ao novo público, e isso contribuiu para a alfabetização da população (ECO, 1964, p.11-12). Hoje, os usuários de smartphones são capazes de “enxergar os problemas de múltiplos pontos de vista, assimilar a informação e improvisar em resposta ao fluxo acelerado dos textos e imagens em um ambiente mutável” (SANTAELLA, 2013, p.279).

Percebendo que “todas as mudanças sociais são efeitos de novas tecnologias” (MCLUHAN, 1971, p.5), conseguimos melhor definir e entender o sujeito de cada período histórico da evolução humana.

 

Referências bibliográficas

CRARY, Jonathan. Suspensões da percepção: atenção, espetáculo e cultura moderna. São Paulo: COSAC NAIFY, 2013.

ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados. São Paulo: Perspectiva, 1965. (Debates, 19).

MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo: Cultrix, 1969.

_______ e FIORE, Quentin. Guerra e paz na aldeia global. Rio de Janeiro: Record, 1971.

ONG, Walter J. Oralidade e cultura escrita: a tecnologização da palavra. Campinas: Papirus, 1998.

SANTAELLA, Lucia. Comunicação ubíqua: repercussões na cultura e na educação. São Paulo: Paulus, 2013.

A aventura das imagens na rede!

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Pierre Levy (1993) já alertava que a sociedade imersa pelas tecnologias obteria uma realidade simulada, ou seja, virtual, a qual tomaria o espaço do real. A imagem, por sua vez, distribuiria representações.

Ao observar a história da humanidade, é possível perceber que o homem sempre buscou
mecanismos de apreensão do real, principalmente, por meio das imagens.  Isso pode ser notado nas esculturas feitas em mármore e bronze na Grécia Clássica desde o século 10 a.C, nas pinturas desenvolvidas pelos povos medievais no período do Renascimento, no surgimento da fotografia no século XIX, na chegada da televisão no século XX, e em muitos outros suportes que foram evoluindo ao longo dos tempos.

Hoje, com o desenvolvimento da internet e de novos dispositivos eletrônicos, essa relação entre  homem e máquina, entre real e virtual, se aprofundou e fundiu ainda mais. A partir da concepção de McLuhan (2007) que propõe os meios de comunicação como extensões dos homens, é possível perceber que muitas ferramentas de imagens existentes, atualmente, parecem recriar e estender as pessoas para outros lugares, para outras dimensões.

Nota-se que as novas possibilidades de imagens que surgem na rede, estão proporcionando novas experiências sensoriais. São novas formas de criação, de circulação e de apresentação de conteúdos. Como bem coloca Wilson Oliveira, “a entrada das imagens em movimento na cibercultura fez a rede se constituir não mais como a biblioteca de babel, mas como um novo acervo iconográfico, possibilitando uma nova forma de se conceber e de se conectar as imagens na internet”.

Segundo o autor, internet, ciberespaço e realidade virtual são novos modos de interação homem-máquina. Sendo assim, pode-se dizer que a máquina é o novo ambiente da experiência.

Philippe Dubois (2004) vai além ao afirmar que o tempo eletrônico da imagem é sincronizado com o tempo do real. “O realismo da simultaneidade vem se acrescentar ao do movimento para formar uma imagem que nos parece cada vez mais próxima e decalcada no real, a ponto de gerar por vezes confusão..(p.52). Segundo o autor a própria ideia de representação perde seu sentido e valor na atualidade.

“A representação pressupunha um hiato entre o objeto e sua figuração, uma barra entre o signo e o referente, uma distância fundamental entre o ser e o parecer. Com a imagerie informática, essa diferença desaparece: não há nada além da máquina que cobre todo o processo e exclui tudo o mais. O próprio mundo se tornou maquínico, isto é, imagem, como numa espiral insana. A realidade passa ser chamada de virtual”. (DUBOIS, p.48, 2004)  

De fato, as novas tecnologias parecem “criar vidas” próprias. Não é mais a imagem que se assemelha ao mundo, mas, sim, o real que se assemelha à imagem.  

Referências bibliográficas:
OLIVEIRA FILHO, Wilson. Mc Luhan e o Cinema. São Paulo.Futuro, 2017.
MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensão do homem. São Paulo: Cultrix, 2007.
DUBOIS, Phillippe.  Cinema, Vídeo, Godard. Tradução: Mateus Araujo Silva. São Paulo. Cosac Naify, 2004.



O sujeito e a memória individual na era digital

Por: Isabella Gonçalves

O sujeito, na era digital, é pós-moderno, portanto, trata-se do resultado da fragmentação, da descontinuidade, da instabilidade. Disrupções sempre existiram, transformando o mundo no qual vivemos. A primeira delas, talvez, poderia ser a própria invenção da escrita, que colocou em jogo a relação do homem com a oralidade. Sócrates, naquele momento, alertou que tal inovação poderia levar à ignorância. Ele acreditava que a palavra escrita poderia produzir o esquecimento (RUMSEY, 2016). De fato, ela transformou a relação do sujeito com a memória. A partir dos Sumérios, o ser humano passou a contar com arquivos, confiando na inscrição sobre uma superfície para o armazenamento de informações. Naturalmente, a dialética entre o lembrar e o esquecer se transformou profundamente.

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Escrita suméria, a primeira forma de registro humano

Ora, posteriormente, a humanidade viveu uma série de outras disrupções, cada uma em um espaço de tempo menor. O sujeito, diante de tantas transformações, foi deslocado, passando a ter uma experiência sensória distinta, que se transformava a cada novo meio e, como já diria McLuhan (1969), o meio é a mensagem, por ser ele o principal catalizador de tais metamorfoses.

De acordo com Crary (2013), na modernidade, houve uma recriação da experiência sensória, fato que revolucionou a percepção. Um problema apontado por pesquisadores, a partir de então, foi o da atenção, provocado por estímulos sensórios crescentes. No contexto moderno, é possível afirmar que existe uma crise de atenção, uma vez que o capitalismo incentiva, a cada dia mais, estímulos que provocam a distração. Essa problemática se trata do resultado de um sistema que exige que tomemos como natural a alternância rápida de atenção de uma coisa para a outra. O capital, ao acelerar a troca e a circulação, produziu, necessariamente, esse tipo de adaptabilidade humana.

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Seriam o tablet e outros gadgets tecnologias da memória ou extensões da memória humana?

Ora, se Sócrates se preocupou com a memória, a partir da invenção da escrita, o que diria ele do Século XXI, ancorado em grandes arquivos digitais, nas nuvens de bits, que se portam como verdadeiras extensões da memória humana. Hoje, já não precisamos memorizar um número de telefone; o horário do voo; ou o compromisso do dia seguinte. Temos tudo na palma da mão. Diante desse contexto, é primordial questionar como tal realidade transforma a memória individual. Com tantos estímulos, o que é retido pelo ser humano? E seriam os equipamentos digitais confiáveis o suficiente para o arquivamento de tal conhecimento?

 

Referências

CRARY Jonathan. Suspensões da percepção. Atenção, espetáculo e cultura moderna. São Paulo, Cosac e Naify, 2013.

MCLUHAN, Marshal. Os Meios de Comunicação Como Extensões do Homem. São Paulo: Ed. Cultrix, 1969

RUMSEY, Abby. When are are no more – how digital memory is shaping our future? London: Bloomsbury, 2016

O sujeito como centro tecnológico

por Aline Pinna

 

As novidades tecnológicas vão fixar-se no nosso cotidiano. Dia após dia, algo novo surge ou aperfeiçoa. Esse é ciclo que as tecnologias são seguramente sofrendo. Nada apareceu por acaso. Os aparatos, dispositivos, dispositivos são fundamentais para a sobrevivência em um paradigma de sociedade que está online (virtual) está cada vez mais tendo a proximidade com o real. Porém, para isso ocorrer, o homem tem que ter capacidade e habilidade de criar e inventar. Deste modo, todo o potencial de suas criações está no próprio sujeito.

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A questão do sujeito vem dos antigos anúncios comunicacionais. Ele é formado historicamente pelo seu meio de trabalho. Podemos ter como exemplo a fotografia. O homem tornou-se um artista / fotógrafo não qual manuseava um instrumento. This is a major presence maquinica in historic of the modernity in the early century.

Depois, como registro de cinema. O ser humano agora se tornou um espectador. O sujeito foi reintroduzido na imagem tanto como o quanto mais espectador, já que uma máquina tem o poder de ver pela ilustração das imagens que são vistas daquele engenho. A maquinaria cinematográfica é produtora do imaginário. O seu poder não está apenas na extensão tecnológica, mas também na extensão simbólica.

O vídeo é outro equipamento que faz transmissão a distância, ao vivo e multiplicada. Logo, o homem passou a ser a audiência, uma onipresença fictícia, sem corpo, sem identidade e sem consciência, ou seja, um sujeito fantasma indiferenciado. É esse sujeito que expõe à ilusão (simulação) da co-presença integral.

Ainda podemos citar a informática. Trata-se de uma concepção do real, onde a imagem é o próprio “real” (o referente originário) que se torna maquínico, porque é gerado pelo computador. Neste caso, o homem é a instância do programa, podendo ser criador, programador, espectador e interagente. Isto é, o sujeito é o enunciador e não mais o autor, espectador ou narrador.

Filmes

Há uma interação frequente entre o homem e a máquina. Essas interações já estão até sendo retratadas em filmes, como Robocop, Elysium e Her. Essas obras conceituam a um futuro distante. Mas, com a constante velocidade da evolução das tecnologias vemos que tudo é possível, pois muitos dispositivos já estão incorporados no nosso dia a dia. O que antes era considerado ficção científica, hoje já estão inseridos ao nosso enredo real.

Nesses filmes, e em muitos outros, estão questionando a realidade. Estão prevendo as tecnologias que podem surgir nos próximos anos. As obras cinematográficas já incorporam diversos recursos que estão sendo utilizados atualmente, como a realidade aumentada, tablets, envio de arquivos somente por proximidade (bluetooth), e-readers, geolocalização, aplicativos, interação a distância, mesas touchscreen, pulseiras inteligentes e muitas outras novidades.

Percebemos, então, que a relação entre maquinismo-humanismo é mais filosófica do que histórica, tendo um encadeamento com a evolução da história das tecnologias e a questão do humanismo ou artisticidade (ligada a parte estética). Esses dois pólos constitui a característica propriamente inventiva dos dispositivos, onde o estético e o tecnológico podem se encontrar. Desta forma, notamos que não existe mais uma relação intensiva, mas sim, uma relação extensiva.

 

Referências:

DUBOIS, Philippe. Cinema, vídeo, Godard. São Paulo: Cosac Naify, 2004. 

EVOLUÇÃO DA TECNOLOGIA MOSTRA QUE INTERAÇÃO HOMEM-MÁQUINAÉ É MAIS FICÇÃO. Disponível em: <https://www.em.com.br/app/noticia/tecnologia/2014/03/27/interna_tecnologia,512316/evolucao-da-tecnologia-mostra-que-interacao-homem-maquina-nao- e-mais-ficcao.shtml>. Acesso em 12 de novembro de 2018.

O QUE TE MOTIVA / TECNOLOGIA E HUMANIDADE. Disponível em: <https://exame.abril.com.br/blog/o-que-motiva/tecnologia-e-humanidade/&gt;. Acesso em 12 de novembro de 2018.

O sujeito inserido no fluxo conectivo

por Matheus Bertolini

Na perspectiva digital é possível elucidarmos um avanço que mescla os preceitos tecnológicos, sociais, culturais e psicológicos. Nessa ótica acredita-se que vivenciamos uma evolução síncrona, porém multifacetada entre as referidas esferas. Essas por sua vez não distinguem-se em espaços separatistas, mas em uma junção ecológica que assemelha o conceito biológico, vislumbrando uma reciprocidade entre as relações humanas e seu habitat, nesse caso, o espectro comunicacional digital.

Na historicidade dos estudos referentes ao fluxo informacional, Raymond Williams (2016) expõe a terminologia unilateral para definir uma relação entre o meio e o sujeito espectador. Nessa teorização o autor acredita que, por meio de uma única direção iniciada na TV com ponto final no espectador, construía-se uma audiência passiva baseada em números e sem interferência na programação televisiva. Nesse sentido, a expressão few-to-many, ou seja, de “pouco para muitos”, faz valer a ideologia proposta por ele.

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Com a evolução já mencionada, a web instaura-se ao cotidiano humano e passa a abrir espaços para uma participação equivalente entre os meios. Em seu livro, A Televisão em Tempos de Convergência (2014), Soraya Ferreira cunha o fluxo bilateral, que em suma seria inserir uma via reversa aos conteúdos, e assim, possibilitar uma influência da TV para a Internet e da Internet para a TV. Dessa forma, adquirindo uma instância de público, o sujeito nesse patamar pode, quer e deve ocupar um lugar de fala para que usemos da máxima many-to-many, ou seja, “muitos para muitos” interferindo nesse fluxo.

Fluxo-2

Na era digital entende-se que o fluxo enquanto elemento híbrido, fluído, inconstante e multidericonal, não pode se limitar em vias. Para tanto, o pensamento de um fluxo conectivo começa a ser entendido nessa reconfiguração estética. Com isso, não há um ponto inicial ou final, mas trajetos com inúmeros rizomas que se interconectam e, por meio do ecossistema digital, possibilitam a interação desse sujeito (biótico) com atribuições abióticas (como os algoritmos, layout, design, ferramentas, etc.). Nessa hiperconectividade, construção de competências e leituras críticas, os fãs ganham um habitat propício para que sua ação gere outras ações e reações.

Fluxo-3

Por fim, se é que podemos finalizar essa discussão, o ecossistema digital proporciona aos fãs o esquema all-to-all, que seria “tudo para todos”, e dessa forma, validamos a visão de Jenkins, Ford e Green (2014) diante o sujeito nesse antes e depois: se antes eles eram passivos, invisíveis e apenas números, agora são migratórios, críticos, habilidosos e com um espaço que incentiva sua presença. Portanto há uma conectividade nesse fluxo e também nesse sujeito, que por meio das expansões e emergências, torna-se notório na participação digital.

Referências:

FERREIRA, Soraya. A televisão em tempos de convergência. Editora UFJF. Juiz de Fora, Minas Gerais, 2014.

JENKINS, Henry; FORD, Sam; GREEN, Joshua. Cultura da Conexão – Criando Valor e Significado por Meio da Mídia Propagável. São Paulo: Aleph, 2014.

WILLIAMS, Raymond. Televisão: tecnologia e forma cultural. Tradução: Marcio Serelle; Mário F. I. Viggiano. 1 ed. São Paulo: Boitempo; Belo Horizonte, MG: PUCMinas, 2016.

A personificação da literacia midiática em Malina.

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Isabelle Huppert em cena do filme Malina (1991) de Werner Schroeter.

por Guilherme Gomes Dias.

Em 1991, o diretor alemão Werner Schroeter lançava sua adaptação da obra de Ingeborg Bachmann chamada Malina. Trazendo Isabelle Huppert como protagonista, a narrativa central é focada na vida de uma personagem sem nome e de sua relação com dois homens, Malina e Ivan. É difícil definir muito bem a personalidade da personagem central, dado que uma de suas principais características é ter sua identidade em crise. Ao longo do texto mencionaremos alguns trechos do livro que são transcritos no filme de forma literal, dada a preocupação do diretor de remontar a escrita disfórica de Bachmann. Cabe mencionar certos momentos em que a personagem afirma “estou totalmente incapacitada para pensar nas coisas que me mandam pensar” (BACHMANN, 1993, p. 58), ou quando a mesma personagem diz “não tenho competência, minha opinião não é competente, não tenho opinião alguma” (1993, p. 71). Serve também ao reforço desta despersonalização da personagem, a frequência em que ela é mostrada em estado de letargia ou ansiedade extrema chegando ao ponto de esquecer que precisa respirar. Ainda assim, assistimos à personagem exercer seu papel social, sendo uma espécie de professora ou escritora, mais uma característica que não é definida ao certo ao longo do filme ou do livro.

Façamos agora a apresentação quanto aos dois homens que compõem o triangulo relacional da narrativa. Mais uma vez, não é possível determinar suas características de forma muito precisa: Malina é descrito como um escritor desconhecido que graças a certos privilégios ocupa um cargo em instituições da cidade que lhe permitem não ser notado [voltaremos a essa capacidade de não ser notado a seguir], já Ivan é funcionário de um emprego regular em um prédio que lida com finanças. Ambos vivem um relacionamento com a personagem central. Mas é importante dar mais destaque ao papel de Malina nesta narrativa: no filme ele aparece em contato apenas com a protagonista, surge como um espírito vagante em determinadas cenas que trazem a sensação de que o personagem possui certa onipresença. A escolha do diretor por trazer estas cenas pode ser justificada pela forma que Malina é algumas vezes mencionado no livro, como por exemplo, o questionamento frequente da personagem sobre a real existência de Malina. Ao longo da narrativa é possível perceber que Malina acaba funcionando como um complemento da personalidade da personagem central. Ele existe, mas apenas na cabeça dela, talvez por isso seu trabalho é descrito como algo não-relacional e este também seria o motivo pra forma em que ele se manifesta nas cenas do filme. Enquanto a personagem central vive sua disforia, Malina a coloca de volta nos trilhos, transporta a personagem de volta à realidade e à sã consciência. Já Ivan é real, simboliza o amor, o desejo da personagem por viver uma realidade ortodoxa e proposital.

Apresentando de forma breve os personagens de Malina, buscaremos mostrar ao leitor como a narrativa descrita é capaz de dialogar de forma metafórica com os estudos dedicados à literacia midiática. A partir da lógica desenvolvida por Marshal McLuhan podemos afirmar que os meios de comunicação moldam a percepção e desta forma, são inerentemente agentes produtores das subjetividades. O indivíduo moderno tem sua percepção construída a partir da experiência sensível resultante de sua interação social e estas relações sociais estão atravessadas pelos meios de comunicação. Reconhecer este potencial de formação da subjetividade inerente dos meios de comunicação é reconhecer a necessidade de um elemento que permita a decodificação destes meios e é olhando por este horizonte que encontramos a literacia midiática. Não é possível dizer que exista uma convenção rígida quanto ao que define a literacia midiática, mas visando reunir estas várias perspectivas sobre o tema, W. James Potter redigiu o texto The state of media literacy (2010). De forma sintética o autor adiciona em seu texto um relatório das definições apresentadas por autores como D. Adams e M. Hamms (2001) e R. Hobbs (2001), além de reunir as definições apresentadas por organizações de pesquisa como a Alliance for a Media Literate America e a Media Education Foundation. A percepção do autor é que com o vasto campo de abrangência pelo qual a literacia midiática pode se alastrar, as definições acabam sendo adaptadas ao direcionamento feito em cada estudo. Ainda assim, ele propõe inicialmente uma reflexão sobre algumas questões centrais que permitiriam a convergência destas definições sobre o tema. Estas questões são: o que é a mídia? O que é literacia? E qual seria o propósito da literacia? Buscando responder a última destas perguntas, selecionamos o seguinte trecho:

O propósito da literacia midiática é de ajudar as pessoas a se protegerem dos efeitos potencialmente negativos. O propósito de se tornar mais dotado de literacia midiática é o de obter maior controle sobre as influencias em nossas vidas, particularmente as influencias constantes das mídias de massa. Isso não significa dizer que todos os acadêmicos de literacia midiática acreditam que a mídia exerce um efeito poderoso sobre os indivíduos. Ainda assim, parece haver um consenso de que mesmo as mídias mais fracas e sutis são importantes de serem consideradas, dada a natureza persuasiva da influência midiática através de nossa cultura acompanhada pelos altos índices de exposição das pessoas nas várias formas de mídia ao longo do curso de suas vidas. (POTTER, 2010, p. 681, tradução nossa).

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Isabelle Huppert e o personagem Malina (Mathieu Carrière).

Ou seja, a utilidade da literacia midiática se justifica por um interesse em tornar o indivíduo dotado de uma consciência capaz de lidar com os meios de comunicação, sendo capaz de assumir sua autonomia ao mesmo tempo em que se relaciona com elas. Outras convenções entre os acadêmicos da literacia midiática podem ser apontadas como, por exemplo, a necessidade de que a literacia seja adquirida, pois não é inerente ao indivíduo e também sua característica multidimensional, podendo afetar os indivíduos por diversos meios e de formas diversas. Ainda que assinalemos a existência dessas múltiplas definições e de diálogos entre elas apresentadas por Potter, iremos nos concentrar na definição da literacia midiática como a capacidade de acessar, analisar e avaliar o poder de imagens, sons e mensagens. Enquanto as mídias necessitam comunicar de forma clara e competente, o indivíduo em contato com elas deve ser capaz de compreender as mensagens e influências resultantes da experiência midiática.

Voltando ao filme que propomos como objeto central, o personagem Malina parece funcionar na vida da protagonista com os mesmos propósitos que a literacia midiática possui. Em certos momentos da narrativa é possível perceber que além de encontrar-se em profunda crise individual, a personagem central busca decodificar a origem desta crise e depara-se com um trauma de infância. No filme de Schroeter esse trauma é revelado como a primeira cena do filme na qual assistimos o assassinato de uma criança. Essa criança era a irmã da personagem central e foi assassinada pelo próprio pai. A personagem de Huppert só irá revelar esse trauma mais tarde na narrativa e o faz contando com o direcionamento de Malina. É o personagem que dá nome à obra que irá ser capaz de revelar a origem do colapso da personagem central. Ao descobrir a origem de seus traumas ela se vê livre a retornar para a autonomia de sua consciência. Lidamos aqui com uma ideia metafórica de que Malina é a literacia midiática para a personagem de Huppert, é o mecanismo pelo qual ela se ampara para acessar, analisar e avaliar sua própria realidade. Este homem funciona como a potencia individual em aplicar o discernimento sobre as coisas.

Afim de reforçar esta relação metafórica entre Malina e a literacia midiática, podemos mencionar novamente a parte em que a protagonista afirma “estou totalmente incapacitada para pensar nas coisas que me mandam pensar” (BACHMANN, 1993, p. 58) e acrescentar o trecho em que diz “Nunca perderei Malina, ainda que perca a mim mesma” (1993, pag. 102). Percebemos ao longo da história que a personagem já se perdeu, mas ao dizer que ainda assim teria Malina e após revelando seus traumas, percebemos que ela é a dualidade entre o sentimento de alienação e o de esclarecimento. O que faz a alternância entre estes dois polos é a literacia midiática, a capacidade de decodificar as imagens ao redor e criar com elas uma relação estética e de entendimento. O que faz a alternância entre estes dois polos é Malina. Ainda haveriam outros exemplos da influência de Malina como um resgate das questões inconscientes sendo trazidas à consciência como uma forma de esclarecimento, como por exemplo, um diálogo entre eles sobre o que a protagonista escrevia nos seus cadernos de infância e que agora busca ignorar. Terminaremos apenas deixando estes exemplos como uma indicação ao leitor e para finalizar apresentamos um trecho basilar na relação de Malina e a literacia midiática:

Muitas vezes exagero em minha imaginação, e muitas vezes Malina me chama a atenção para isso; todavia, minha imaginação não é suficiente para captar seu olhar ou o que percebe de forma precisa ou em toda a sua singularidade. Suspeito que ele não devassa os homens, não os desmascara, pois isso seria muito comum e vulgar, além de lhes ser indigno. Malina os vê, e isso é muito diferente; os homens não se tornam menores, e sim, maiores, mais misteriosos […]. não teria se contentado com uma simples impressão ou com uma vaga inquietude, mas me mostrado o verdadeiro assassino, e através desse conforto me levado a uma conclusão. (1993, pag. 202)

É perceptível por este trecho o quanto Malina é parte da experiência existencial da protagonista. É ele quem é capaz de transformar a imaginação da personagem em algo verdadeiro, dotado do sentimento de conforto e de competência para uma conclusão autônoma. Mesmo revelando o assassinato cruel à personagem, é a percepção desta ferida emocional que revela a autonomia sensorial e física da personagem. Junto à Malina ela era uma só, olhava o mundo como um mistério que queria desvendar e assim, sua consciência seria retomada de forma autônoma. Por isso repetimos: Malina é a personificação da literacia midiática.

 

BIBLIOGRAFIA

BACHMANN, I. Malina. São Paulo: Siciliano, 1993.

POTTER, J. The State of Media Literacy, Journal of Broadcasting & Electronic Media, 2010, v. 54, n.4, p. 675-696. Disponível em: <https://goo.gl/UWDdba&gt;. 05 nov. 2018