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O arquivo, esse monstro temível e sedutor, é transparente e opaco

por Ramsés Albertoni

 

A artista plástica chilena Voluspa Jarpa possui uma obra que se caracteriza por refletir a respeito do problema do deslocamento dinâmico da cidade, a insegurança, o abandono a destruição, a história e a memória, incorporando as tecnologias digitais como ferramentas representacionais em seus trabalhos. Jarpa questiona as representações da história em diversos sistemas da imagem, como nos meios de comunicação ou na arte.

 

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Foto: Ramsés Albertoni

A instalação da artista, Histórias de aprendizagem, participou da 31ª Bienal de Artes de São Paulo, que ocorreu em 2014. Os trabalhos da edição desta Bienal, intitulada Como (…) coisas que não existem, foram concebidos dentro do conceito de “projeto curatorial”, muitos realizados em colaboração entre dois ou mais indivíduos: artistas e profissionais de outras disciplinas, como pedagogos, sociólogos, arquitetos ou escritores. Firmou-se como uma exposição profundamente conectada com alguns temas centrais da vida contemporânea: identidade, sexualidade e transcendência.

A obra de Jarpa é uma instalação labiríntica e irregular composta, de um lado, por arquivos da CIA sobre a ditadura brasileira (1964-1985) revelados há alguns anos pelo governo dos Estados Unidos e, de outro, por documentos dos serviços secretos brasileiros produzidos durante os mandatos dos presidentes Getúlio Vargas (1951-1954) e João Goulart (1961-1964). Deste último, ela inclui também registros sobre o exílio no Uruguai e o suposto assassinato na Argentina, em 1976, investigado como parte do plano coordenado entre as ditaduras do Cone Sul conhecido como Operação Condor.

De acordo com a artista, é sintomático o fato de que, antes da liberação desses documentos ao acesso público, em todos eles haja trechos que foram riscados. Isso pode ser interpretado como o comportamento histérico que, na psicanálise freudiana, designa a impossibilidade de lidar com o trauma, pois o trauma é um relato arquivado e negado, e o sintoma, um arquivo cifrado. Aos riscos dos documentos originais, a artista soma a estrutura da instalação, que impede que o espectador tenha acesso aos documentos que estão diante dele, podendo apenas vislumbrar os que estão em segundo e terceiro planos. Dessa maneira, experimenta-se uma possibilidade como impossibilidade, o que remete a uma promessa de revelação que, na verdade, se concretiza como repressão.

Jarpa realizou várias obras a partir de arquivos sobre o Chile e outros países latino-americanos revelados pelos Estados Unidos. Em todos os casos, analisa o que foi apagado e chama a atenção para a imagem resultante do documento que sofreu intervenção: uma imagem que expressa tanto a construção de visibilidades quanto a potência poética e política dos usos do arquivo, e que cria sombras no presente.

Dessa forma, o artigo reflete a comunicação humana como um processo artificial em que os símbolos se organizam em códigos, como formula Flusser (2007), que tecem “o véu do mundo codificado, o véu da arte, da ciência, da filosofia e da religião, ao redor de nós, e o tece com pontos cada vez mais apertados, para que esqueçamos nossa própria solidão e nossa morte, e também a morte daqueles que amamos”. O “mundo codificado” seria, então, aquele cujo significado geral da vida em si mudou sob o impacto da revolução na comunicação.

Por conseguinte, a questão a ser investigada é o que há por detrás das imagens criadas por Jarpa, numa sociedade em que a transparência é uma norma cultural, segundo o filósofo Byung Chul Han, cujos ditames impõem um sistema totalitário que suprime a alteridade, operando a “violência da positividade” em desfavor da “negatividade”.


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